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Interculturalidade para a gente se conhecer a si própria

Crónica do III Encontro de Didática do Português

Joseph Ghanime

Escrita: cruzamento de vontades, competências e culturas foi o título que Paulo Feytor Pinto escolheu para abrir o III Encontro de Didática do Português, organizado pela DPG em Lugo. O ex-presidente da APP (Associação de Professores de Português de Portugal) conseguiu seduzir os assistentes com novas formas de explorar a escrita nas aulas, muito para além das rotineiras encomendas de redações para serem feitas em casa.

Feytor descreveu do princípio ao fim uma sequência didática levada às aulas entre janeiro e setembro de 2010 com uma turma do segundo ciclo de escolaridade. Aproveitando a circunstância favorável de contar com uma estudante chinesa, os alunos e alunas realizaram um conjunto de atividades linguísticas que os aproximaram da língua e cultura do país de origem da sua colega de turma.

No decorrer da sequência didática, além de outras tarefas de apoio, os alunos e alunas de Feytor:

  • leram de forma extensiva o conto A Salvação de Wang-Fô de Marguerite Yourcenar, usando alguns excertos omitidos para reconstruir o texto original, e assisistindo à projeção de um filme de desenhos animados em francês.
  • redigiram um resumo do conto, sequenciando a produção do texto em diversas fases progressivas.
  • ouviram a tradução para o chinês do conto, encomendada à própria colega chinesa da turma e lida pelo pai da mesma na sala.
  • debateram sobre os traços mais marcantes da língua chinesa.
  • ouviram a declamação de um poema chinês pela aluna, com esclarecimentos sobre o significado e a tradução do mesmo, envolvendo a visualização do texto em carateres ideográficos e adaptação ao alfabeto latino.
  • criaram uma tradução do poema de maneira coletiva.

No final da palestra, Feytor debruçou-se sobre a avaliação e correção das tarefas escritas que faziam parte da sequência didática. Muito para além de uma avaliação baseada no erro gramatical e ortográfico, as seguintes variáveis de correção foram propostas: extensão do texto; adequação à tipologia textual; progressão das ideias; pertinência da informação dada; coesão; articulação interfrássica; morfossintaxe; e, por último, sim, ortografia.

Os princípios que nortearam toda a experiência de aprendizagem foram sete: escrita como processo, autonomia, diversidade metodológica, integração de competências, adequação ao contexto, educação intercultural e recurso a TIC. De forma aberta ou subentendida, estes setes princípios conseguiram pôr em causa muitas das inércias do nosso trabalho rotineiro de aulas na hora de trabalhar com a escrita.

No que diz respeito à autonomia, Feytor sublinhou a conveniência de responsabilizar os formandos, envolvendo-os na tomada de decisões sobre o conteúdo das tarefas de aula. O contexto, por sua vez, foi tido em consideração ao adaptar a progressão da sequência didática a diversos momentos relevantes no ano académico, como a Semana da Escola. Mostrou-se também um aberto defensor da continuidade pedagógica, no sentido de os docentes tomarem conta das mesmas turmas durante vários anos seguidos.

Trabalhar a escrita como processo, e não apenas como resultado, levar-nos-ia a dar a importância devida às fases prévias e posteriores à própria criação textual: a preparação e a revisão, geralmente pouco ou nada trabalhadas nas aulas. O próprio momento de execução ou produção do texto é passível de ser trabalhado, in situ, nas aulas, para o qual cumpre alargar o tempo das sessões – reivindicação que Feytor já formulara no I Encontro da DPG – e aproximar-se do formato de atelier de escrita.

Já na defesa da interculturalidade, Feytor revelou-se original, corajoso e empenhado. Deixou claro que a presença de alunos de diversas procedências nas turmas não constitui para ele um empecilho, antes um desafio e uma grande vantagem. A educação intercultural não age apenas enquanto meio de conhecimento ou integração do outro, mas também enquanto única maneira de chegar ao conhecimento de nós próprios: daí que as turmas com clara predominância de alunos portugueses precisem desse tipo de formação em igual ou maior grau do que as turmas ostensivamente multiétnicas.